Digitalização e midiatização: aproximações e rupturas

Por em 25 de julho de 2012

Entrevista com Bernard Miége

De: Moisés Sbardelotto. Doutorando PPGCC-Unisinos.

“A digitalização introduziu algumas rupturas essenciais na midiatização das ações infocomunicacionais”. Multiplicaram-se as redes infocomunicacionais. Aumentou-se o poder dos fluxos. Um acento marcante posto  na participação e na colaboração. Para Bernard Miège – professor emérito da Universidade Stendhal-Grenoble 3, na França, da qual foi reitor de 1989 a 1994 –, essas são algumas das características do atual estágio da Internet e da digitalização. Miège esteve no Brasil entre os dias 16 e 20 de abril, a convite da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo, Rio Grande do Sul. Ele ministrou o primeiro seminário da Escola de Altos Estudos, intitulado Fundamentos sociais das tecnologias de informação e comunicação, e que contou com transmissão ao vivo via Internet para outras três universidades brasileiras – nos Estados do Rio Grande do Sul, Goiás e Piauí.

Na entrevista abaixo, Miège se detém sobre alguns dos conceitos abordados nos cinco dias de seminário, como inovação, usos e práticas, convergência, o papel dos “amadores”. Miège é autor de inúmeros livros, dentre eles, em português, A sociedade tecida pela comunicação: Técnicas da informação e da comunicação entre inovação e enraizamento social (Paulus, 2009) e O pensamento comunicacional (Vozes, 2000).


Bernard Miège ministra seminário na Escola de Altos Estudosbernard-miege1

Quais são as inovações da Internet para as práticas comunicacionais contemporâneas? Como essas inovações se manifestam nos usos sociais da Internet?

Bernard Miège – A Internet, stricto sensu, não reúne nem resume (falta muito para isso!) todas as inovações relativas às Tic [tecnologias da informação-comunicação], muitas vezes apresentadas como aquelas da era digital. A Internet é justamente a rede das redes, o protocolo que permite conectar todo um conjunto de redes de comunicação cada vez mais eficientes. Com a multiplicação dessas redes e o aumento do poder dos fluxos, a partir de agora é possível trocar cada vez mais mensagens e transportar arquivos cada vez mais pesados. Então, o que se produz é uma ampla internacionalização da comunicação tanto profissional quanto pessoal, permitindo o uso de diversos dispositivos (constituídos a partir das Tic). A abertura da Internet ao público (a partir de meados dos anos 1990) impulsionou as trocas, favoreceu as indústrias de redes, mas não somente elas: igualmente as indústrias de materiais de informática, as novas redes de indústrias da informação (Google etc.) e as outras redes de indústrias culturais. Atualmente, os principais atores e beneficiários dessas inovações ligados à Internet são as indústrias mundializadas da comunicação: ferramentas e produtos de informática, telecomunicações. Em quase todas as partes, os usuários-consumidores foram levados a gastar somas substanciais dos seus orçamentos nesses âmbitos. Esse é o grande fenômeno da primeira década deste século na comunicação. E esse está longe de ser o caso para os conteúdos.

Que mudanças ou rupturas o processo de digitalização provoca na compreensão do fenômeno da midiatização?

Bernard Miège – A digitalização – que não devemos esquecer de unir a outras grandes inovações: a compressão dos sinais, a miniaturização dos componentes, assim como o tratamento, a visualização e a modelização dos dados – introduziu, com efeito, algumas rupturas essenciais na midiatização das ações infocomunicacionais. Mas o processo de midiatização mantido “entorpecido” por essas inovações havia começado anteriormente, digamos sobretudo em torno dos anos 1970. Agora, a produção das ações é favorecida e facilitada; a difusão é multiplicada, mesmo que apenas em razão do alargamento do domínio midiático; a interatividade é tornada possível; o refinamento das estratégias na direção dos destinatários é mais fácil; as redes sociais estendem os contatos; a produção dos “amadores” (ver abaixo, na pergunta 5) tem ocasiões para se fazer valorizar; e o quadro tende a se internacionalizar um pouco mais. Mas não podemos nos esquecer de quem são os atores principais dessas ações de midiatização: as grandes empresas, as agências públicas desempenham um papel de primeiro plano, mesmo que os atores associativos e os movimentos sociais também tenham a oportunidade de intervir em um espaço público cada vez mais fragmentado, onde cada vez mais as opiniões e as proposições dos indivíduos têm a possibilidade de se posicionar. Eu não estou convencido de que eles conseguem contrabalançar as intervenções dos atores dominantes. Veremos!

Na era da internet, como podemos compreender o conceito de convergência?

Bernard Miège – Não me parece que a convergência possa ser tida como um conceito. Ela é principalmente uma construção social evolutiva, à qual concorrem todas as indústrias de rede (inicialmente, as autoestradas da informação), as poderosas indústrias de materiais e de softwares de informática e os grupos midiáticos. Depois, um segundo nível se apoiou a esse primeiro nível: a convergência (necessária) entre as disciplinas científicas e, particularmente, a busca de transversalidades entre aquelas dentre elas que têm em perspectiva a dimensão nanométrica. E, finalmente, se conecta a esses níveis um terceiro nível, propriamente tecnológico, que tem o encargo de preparar os novos produtos nano. Certamente, pode-se identificar ações e políticas que efetivamente relacionam setores hoje separados, mas o essencial não está aí: o que está em jogo é, ao mesmo tempo, econômico, político, técnico, científico e intelectual, e o projeto de convergência é um projeto mobilizador, de escala mundial, que acompanha uma ideologia incontestavelmente tecnodeterminista. É por isso que consideramos, em uma pesquisa recente, que a convergência avança sob a aparência de máscaras.

Diante do avanço das redes sociais (sociais, políticas, religiosas etc.) na internet, qual é a sua definição das noções de usos e práticas sociais?

Bernard Miège – Os usos são as utilizações identificadas das Tics. Elas são qualificadas como sociais porque elas são comuns a vários indivíduos, formando categorias de usuários. Eles são constatados em curto prazo e correspondem a cada Tic, ou ao menos a cada dispositivo. Eles devem ser distinguidos das práticas sociais, de informação e de cultura, que não se limitam às Tic, mas são sobretudo relativamente duráveis e devem ser inscritas em longo prazo. Elas se modificam, mas dependem dos hábitos culturais e variam em função de determinações sociais e culturais próprias às classes de indivíduos. As práticas (por exemplo, a prática cotidiana de informação ou a prática cinematográfica ou a prática de audição musical) são multimídias e multitécnicas, e integram progressivamente os usos que produzem as mutações.

Qual é o papel dos usuários e dos chamados “amadores” no atual fenômeno da comunicação midiática?

Bernard Miège – As novas ferramentas da comunicação estão de tal modo constituídas que solicitam, ou melhor, solicitariam, por elas mesmas, a participação, a colaboração e até mesmo a contribuição dos usuários, ou participantes. O acento é posto continuamente nessa dimensão por publicitários que acompanham o desenvolvimento dos diversos produtos, por exemplo Henry Jenkins acerca da Web 2.0, mas também por outros que desenvolvem posições idênticas depois de longos prazos. Fato é que a maioria das Tics favorecem as ações dos usuários: blogs políticos e literários, comunidades virtuais em diversos domínios, produção informacional nova (Wikipedia, sites alternativos), produção cultural independente (por exemplo na música). Diante do que é observável, devemos nos interrogar e não simplesmente nos contentar com assinalar alegremente o fenômeno. Em primeiro lugar, essas ações estão na maioria das vezes em continuidade com ações anteriores. Elas não nascem do nada, elas prolongam experiências (é o caso dos novos “especialistas” da Wikipédia ou dos telefotógrafos presentes nos locais de conflito). Então, os não profissionais sempre foram interessados em produzir, em divulgar e em se tornar profissionais. Finalmente, não devemos ignorar o fato de que as grandes indústrias da comunicação (pode-se citar prioritariamente a Apple) se tornam especialistas de apelos aos amadores para evitar as regulamentações (os direitos autorais, muito particularmente) e as remunerações profissionais. O que está em jogo não se situa, portanto, somente do lado do apoio à participação dos “amadores”. Também devemos considerar como ambíguo o emprego do termo amador e as conotações valorizadoras que ele traz consigo. Isso tem levado especialistas a se recusar a empregar ou a acrescentar aspas. Esse é o meu caso.

 

 

(*) Moisés Sbardelotto é mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela UNISINOS , na linha de pesquisa Midiatização e Processos Sociais. Bolsista do CNPq; Jornalista; ex-coordenador do Escritório da Fundação Ética Mundial no Brasil (Stiftung Weltethos), com sede no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, tem experiência na área de Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: Internet, interação, midiatização, religião.