Tema
Antropoceno, classificações e ambiente: olhares a partir da
midiatização
(Call for Papers para o VI Seminário – 2024 – UFSM-USP)
O VI Seminário Midiatização dá continuidade à proposta fundante do projeto: interlocuções
entre perspectivas do Norte e do Sul a partir de eixos que permitem não só observações de
fenômenos que estão na agenda social e acadêmica, mas também cotejo e agonística entre
perspectivas diferenciadas sobre eles.
Nos cinco seminários realizados, as quase três dezenas de conferências e cerca de 600
comunicações apresentadas nos Grupos de Trabalho revelam uma linhagem de pesquisa que se
distribui entre perspectivas que podem ser “mapeadas”: do Sul, abordagens
semioantropológicas, filosóficas – sociológica e antropológica –, pragmatismo e
interacionismo; do Norte, construtivistas, institucionalistas e sociossimbólicas. Essa diversidade
também busca a compreensão das matrizes culturais, econômicas, políticas e tecnológicas,
muitas vezes em interface com as teorias das mediações (Livro Compós 2012) e cibercultura.
As questões especificamente comunicacionais são transversais, de forma às vezes acentuada
(Braga, 2017; Ferrara, 2016).
Neste VI Seminário, uma interface especial será com as teorias da mediação, que tem na
ECA USP – local em que se realizarão as mesas de conferências e debates presenciais – uma de
suas referências no Brasil, na América Latina e no mundo. Converge-se com a premissa de que
as transformações no planeta demarcam, em seu aspecto ambiental, uma correlação direta com
os ambientes socioculturais e geopolíticos de todas as regiões do mundo. A partir disso, pensar
o mundo na perspectiva latino-americana, brasileira, torna-se um desafio, frente às tensões
hegemônicas das formulações téorico-metodológicas de contextos não hegemônicos, situados
no Hemisfério Sul global, como é o caso brasileiro.
No âmbito dessa complexidade, a midiatização acentua como meios comunicativos
socialmente disponibilizados são direcionados por instituições, estruturas, atores, configurando-
se novos circuitos e interações (Braga, 2012) em ambientes construídos socialmente (Gomes
2017, Hepp e Couldry, 2017). Os meios comunicativos (que não se confundem com as
tecnologias, mesmo quando institucionalizadas) são problematizados como parte do processo
de midiatização, reconfigurando-se como meios (da sociedade e da natureza), em sentidos
diversos, não necessariamente civil (Sodré, 2021). Ao mesmo tempo, a análise da tecnologia
interessa quando problematizada – por exemplo, como foi feito no V Seminário, realizado na
UFSM – para a compreensão do funcionamento de algoritmos, IA e plataformas, em busca de
inferências que a situam não como coisa em si, pelos usos sociais (Goran, 2018; Miège, 2018),
mas como parte de um processo de produção e recepção (circulação – conforme epistemologias
inauguradas por Verón, em atualizações com Fausto Neto, 2008 Carlón, 2020 e Rosa,
2019,Anselmino, 2020, Ferreira, 2022).
Nas cinco edições anteriores, especialmente nos Grupos de Trabalho, a produção
bibliográfica registra também a construção de interfaces entre essas diversas abordagens
epistemológicas e metodológicas, especificando-se nos objetos empíricos em análise, o que
acentua a produtividade da proposta em termos de elaboração coletiva do conhecimento.
Autorreflexivamente, constata-se também que as interlocuções epistemológicas e
metodológicas nessa diversidade da linhagem ainda estão em curso de produção – próximas,
mas ainda distantes do ponto objetivado de “paridade” pretendida no uso dos operadores
epistemológicos e metodológicos entre Norte e Sul. O VI Seminário deverá inovar, em sua
forma de organização de Mesas e Grupos de Trabalho, mecanismos para fortalecer
aproximações a este objetivo geral do Projeto.
Proposição abrangente
O debate em torno do conceito de midiatização tem permitido confirmar sua contribuição à
compreensão dos processos sociais contemporâneos, inclusive quando em interface com outros
conceitos paralelos trazidos da área da comunicação ou de outras teorias da linguagem ou
sociais, incluindo-se aí a demanda de que a produção científica considere a contínua revisão dos
seus fundamentos teóricos e metodológicos. Essa revisão aponta a necessidade de uma produção
científica que, em conexão de rede produtiva, vá além dos focos anteriores de grupos de pesquisa
centralizados em territórios hegemônicos. Em confronto com a instabilidade sociocultural em
midiatização, a produção científica exige a comparação entre territórios ambientais globais que
devem ser compreendidos na constante produção das suas diferenças.
Considerando a convergência dos pontos selecionados para esta edição, é importante
assinalar que o Seminário de Midiatização e Processos Sociais leva em conta a instabilidade da
ciência que, acompanhando a evolução tecnológica e sociocultural do contemporâneo, exige
uma produção científica atenta aos parâmetros epistemológicos que, em revisão mais heurística
do que aplicativa, solicita atualização de seu conceito central, bem como a verificação empírica
da sua dinâmica.
*
O VI Seminário Internacional de Midiatização enfocará três eixos temáticos a serem
pensados em visada comunicacional, na perspectiva da midiatização: Antropoceno;
Classificações Sociais; Ambiente. Esses três eixos, direcionadores da chamada de trabalhos,
comportam desde abordagens originadas na antropologia até aquelas relativas às caracterizações
tecnológicas que demarcam as sociedades capitalistas contemporâneas.
No contexto das reflexões abrangentes a seguir desenvolvidas, que esperamos estimularão
perspectivas renovadoras e de aprofundamento reflexivo e das pesquisas em andamento na área,
encaminhamos também conjuntos de questões relativas a cada um dos três eixos, como
pontuação heurística – conjuntos que podem ser desenvolvidos ainda por questões correlatas ou
complementares assumidas pelos participantes ao submeterem seus textos para o evento.
No foco dessa responsabilidade, é necessário ponderar que a comunicação assume novas
dimensões, indo muito além da simples transmissibilidade da informação. Impõe-se observar o
vetor cultural que informa para além da base tecnológica de ascendência econômicomercadológica, pois envolve uma dimensão de inclusão/exclusão social e comunicativa.
Eixo “Antropoceno”
O Antropoceno é a época geológica na qual vivemos, termo cunhado em um famoso artigo
(Crutzer; Stoemer, 2000) publicado na entrada do novo milênio. Depois do teocentrismo
medieval e do antropocentrismo moderno/pós-moderno, as múltiplas transformações que estão
a ocorrer na era contemporânea colocam em discussão não só as ações humanas (debates sobre
o antropoceno), mas também a suas características e limites (debates não antropocêntricos), ou
seja, as suas ligações com a natureza.
Até há pouco tempo podíamos pensar o humano como algo estável em oposição à natureza
(da qual o Sapiens se diferenciou há milhares de anos) e à midiatização automatizada (não só a
recente algorítmica, mas também a que desde a Revolução Industrial gerou dispositivos técnicos
como a fotografia).
Estes limites estão hoje em discussão devido ao avanço da automatização algorítmica, que
domina cada vez mais a linguagem e a produção de sentido, e das teorias evolutivas do campo
das ciências sociais, que permitem superar as ideias sobre a transcendência na vida social,
cultural e filosófica.
Há uma revolução epistémica que abala as teorias, as normas e as percepções sociais, tal
como as agendas identitárias têm feito desde alguns anos.
Estes desenvolvimentos não só tornam instáveis as definições do humano e do social, como
também afetam as teorias e a investigação sobre a midiatização – abrindo questões de debate
para as teorias e a investigação sobre midiatização:
1. Que hipóteses sobre a comunicação humana são estimuladas pela perspectiva do
antropoceno, relacionando tradições antropológicas e uma heurística não antropocêntrica?
2. Como o não antropocentrismo afeta as perspectivas e a investigação sobre a midiatização?
3. Que direções o caracterizam? O antropocentrismo é transversal à cultura contemporânea?
Quais diversidades são enviesadas pelas cosmologias específicas (Ocidente, Oriente, Norte e
Sul)?
4. Que áreas do social estão a ser afetadas pelo pensamento não antropocêntrico?
5. Poderá o não antropocentrismo estabelecer uma nova polarização na vida social?
6. Que incidências mútuas entre a natureza, as tecnologias sociais e a comunicação humana
a perspectiva do antropoceno propõe?
7. Que desafios se colocam para a espécie humana em sua construção comunicacional da
realidade social, dada a constatação das tensões entre tecnologia e natureza?
Eixo “Classificações”
O ser humano é o animal classificador, escreveu Claude Lévi-Strauss em La pensée sauvage
(1962). De fato, a classificação está na raiz de muitas atividades humanas na vida social,
produzindo distinções, diferenças, etc. A classificação, hoje, é conduzida principalmente em
processos algorítmicos, por meio de procedimentos computacionais, e controlada por grandes
empresas de plataformas. Na sociedade contemporânea, datificada, as classificações e os
mecanismos de ordenação são alimentados pelas métricas produzidas pelo sujeito social em
movimento no espaço digital.
No Brasil, em particular, mas de forma que está na origem do projeto de Ocidente,
histórica e conjunturalmente, a questão do racismo tem sido investigada considerando-se
também as classificações sociais. Na perspectiva de circuitos afromidiáticos (Campos, 2023),
o medium acoplado a um dispositivo técnico pode “tornar-se ambiência existencial” (Sodré,
2002, p. 24), ao mesmo tempo que a própria circulação se configura numa esfera pública negra,
ou seja, o desterritório da diáspora africana. Nessa ambiência, observa-se a transferência de
formas culturais, políticas e estruturas de sentimentos, respaldadas em discursos políticos de
resistência, cidadania, justiça racial e igualdade (Gilroy, 2001). Esses circuitos mantêm
igualmente uma tensão permanente sobre a esfera pública capitalista, ao propor um programa
social que visa “em todo lugar, subverter e traduzir, negociar e fazer com que se assimile o
assalto cultural global sobre as culturas mais fracas” (p. 45). Assim, a reflexão sobre as
classificações subjacentes a algoritmos e plataformas deve ser ponderada pela circulação, o que
inclui a recepção e constituição de circuitos – tornando mais pertinente o entendimento
conforme os conceitos de midiatização.
Tais processos suscitam uma série de questões:
1. Como os processos de classificação na sociedade datificada se relacionam com os
processos de midiatização?
2. Quais são as formas de valor que acompanham a classificação? Quando é feita a
classificação para o bem comum? Em que medida o comum é dilacerado pelas classificações?
3. Como se desenvolveram historicamente os mecanismos e os processos de classificação e
como esses desenvolvimentos podem ser relacionados à práxis classificatória contemporânea?
4. Qual é o papel dos humanos e da tecnologia, respectivamente, no viés algorítmico?
5. Quais são os vieses na classificação algorítmica em vários aplicativos e protocolos?
6. Como os usuários de mídia percebem o ambiente métrico no espaço digital e quais
possíveis estratégias e táticas são desenvolvidas para gerenciar o viés de classificação?
7. Que responsabilidade deve ser atribuída aos gerentes e proprietários de plataformas para
combater o viés de classificação negativa?
8. Quais regulamentações e políticas envolvem os sistemas de classificação e quais
regulamentações e políticas devem cercá-los?
Eixo “Ambiente”
A caracterização do antropoceno é um marcador de que a humanidade se tornou uma força
sobredeterminante em relação à natureza. Dessa forma, a natureza conforme a entendíamos –
como espaço infenso à ação humana – desaparece, justamente porque está assujeitada à cultura,
à economia e à política. Mas aqui há uma espécie de paradoxo, uma vez que é a partir da
constatação da crise ambiental potencialmente catastrófica, a ameaça aos nossos modos de vida
ou mesmo nossa sobrevivência física como espécie, que assumimos reflexivamente a hipertrofia
da ação humana sob o nome Antropoceno.
Os discursos ambientalistas, difratados em três correntes principais e suas subvariantes
(Prates, 2020), são as manifestações sintomatológicas que emergem a partir do mal-estar gerado
por esta crise, e buscam dotá-la retroativamente de significados. Essas correntes são: o
ambientalismo profundo (cujos pontos nodais compartilha com o discurso mítico-religioso); o
ambientalismo radical (em compartilhamentos com o discurso político, a partir das tradições
emancipatórias e revolucionárias); o ambientalismo reformista (que, por sua vez, estabelece
relações interdiscursivas com o discurso liberal-capitalista). Este último tornou-se expressão
hegemônica, nutrindo-se da potência das máquinas de produção e reprodução semiótica do
capitalismo. É aquele chamado “desenvolvimento sustentável”, envolvendo a atuação das
empresas e agentes da sociedade civil para enfrentar problemas sociais e diminuir a destruição
ambiental.
Na perspectiva neoliberal, à medida que expressam os gostos do público, os produtos e
conteúdos culturais tornam-se cada vez mais sensíveis às “questões verdes” (Boykoff, 2011) em
suas múltiplas evidências, como a produção de conteúdo que critica os efeitos negativos das
corporações e atividades militares no planeta. Alguns filmes sobre mutações de monstros
causadas por uma política de humanidade não amiga do meio ambiente podem ser tomados
como exemplo, aqui (Debus, 2022). Na verdade, podemos ver como a “sensibilidade” do
público incentiva as plataformas de mídia a classificar e organizar qualquer conteúdo digital
com base no impacto ambiental: todos nós nos tornamos muito atentos às informações sobre
emissões de CO2 quando pegamos o Uber ou compramos a passagem de trem.
Quando estamos fazendo nossa escolha de conteúdo “verde”, não estamos percebendo que
tal ambientalização da mídia contemporânea não é apenas (ou mesmo não é) uma filosofia
ecológica das empresas de mídia, mas essencialmente a estratégia comercial orientada para a
maximização da audiência (e maximização de receitas de publicidade ou paywall). Como
podemos ver, as indústrias de entretenimento contemporâneas, que promovem uma agenda
“verde” ecologicamente correta, são, ao mesmo tempo, uma das razões da exploração
antropocêntrica contemporânea da natureza. Este eixo convoca trabalhos que nesse ambiente
midiatizado do capitalismo possam construir interpelações para a construção, desconsideração
ou crítica motivada de tais discursos de sustentabilidade, preferencialmente com estudos
concretos nas redes e nos mundos sociais.
Durante este evento, propomos abordar essa natureza dialética das indústrias de mídia e
entretenimento contemporâneas, colocando as seguintes questões:
1. Que estratégias industriais a mídia moderna usa para explorar a agenda “verde”?
2. Como os enunciados desses discursos se posicionam para se situar no âmbito das
posturas polêmicas que disputam os sentidos ambientais?
3. Como as mídias hegemônicas e alternativas atuam na circulação de tais discursos? Como
lidam com a alteridade dos enunciados críticos ao capitalismo? O que propõem? Como
se dá a circulação de tais polêmicas nas redes? Como a mídia e as plataformas digitais
contribuem para impulsionar o ecopopulismo irresponsável? Como a mídia promove
ideologias sustentáveis, verdes e ecologicamente corretas? Como uma mídia social ou
plataforma de compartilhamento realmente ecológica pode existir?
4. Como se dá o enfrentamento das potências de vida com as biopolíticas e necropolíticas
nesse contexto de disputas?
5. Que tipo de modelo de mídia realmente sustentável poderia ser considerado como
alternativa ao atual sistema capitalista?
6. Como os países do Sul Global podem se opor à atual divisão global do trabalho digital
que os leva a práticas ecologicamente sujas?
REDE INTERNACIONAL DE PESQUISAS EM MIDIATIZAÇÃO E PROCESSOS SOCIAIS
JAIRO GETULIO FERREIRA – UFSM – COORDENAÇÃO GERAL
JOSE LUIZ BRAGA – UFG – COORDENAÇÃO COMITÊ CIENTÍFICO
ADA CRISTINA MACHADO SILVEIRA – UFSM – COMISSÃO DE ORGANIZAÇÃO
VIVIANE BORELLI – UFSM – COMISSÃO DE ORGANIZAÇÃO
ALINE ROES DALMOLIN – UFSM – COMISSÃO DE ORGANIZAÇÃO
FLAVI FERREIRA LISBOA FILHO – UFSM – COMISSÃO DE ORGANIZAÇÃO
ENEUS TRINDADE BARRETO FILHO – USP – COMISSÃO DE ORGANIZAÇÃO
ANA PAULA DA ROSA – UNISINOS – COMISSÃO DE ORGANIZAÇÃO
ISABEL LOFGREN – SÖDERTÖRNS HÖGSKOLA – SUÉCIA – COMISSÃO DE ORGANIZAÇÃO
ANTONIO FAUSTO NETO – UNISINOS
BENOIT LAFONT – UNIVERSITÉ GRENOBLE ALPES – GRESEC
BERNARD MIEGE – UNIVERSITÉ GRENOBLE ASPES – GRESEC – FRANÇA
DEIVISON MOACIR CEZAR DE CAMPOS – PUC-RS
DEMETRIO DE AZEREDO SOSTER – UFS
DINIS FERREIRA CORTES – MIDIATICOM – EDITOR GERAL
GORAN BOLIN – ESTRANGEIRO SÖDERTÖRNS – SUÉCIA
HEIKE GRAF – SÖDERTÖRNS HÖGSKOLA – SUÉCIA
ILYA KYRIA -NATIONAL RESEARCH UNIVESITY – RUSSIA
IRENE GINDIN UNIVERSIDAD NACIONAL DE ROSÁRIO – ARGENTINA
JOÃO DAMÁSIO – UFU
JOSE LUIZ AIDAR PRADO – PUC-SP
LORREINE BEATRICE PETTERS – UNIVERSITÉ GRENOBLE ALPES – GRESEC – FRANÇA
LUCRECIA D ALESIO FERRARA – PUC-SP
LUIS MAURO SÁ MARTINO – UFMG
LUIZ ANTONIO SIGNATES FREITAS – UFG
MARIO CARLON – UBA – ARGENTINA
MIHAELA ALEXANDRA TUDOR – UNIVERSITÉ PAUL VALÉRY
NATALIA RAIMONDO ANSELMINO – UNR – ARGENTINA
PATRICIA SALDANHA – UFF
PAULA DE SOUZA PAES – UFPB
PEDRO GILBERTO GOMES – UNISINOS
RICARDO ZIMMERMANN FIEGENBAUM – UFPEL
STEFAN BRATOSIN – UNIVERSITÉ PAUL VALÉRY MONTPELLIER 3 – FRANÇA
TIAGO QUIROGA – UNB
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